Dizer é fácil. Fazemos isso o tempo todo. Vomitamos palavras e retiramos a dignidade do outro com uma facilidade inacreditável e perversa. Nós, ao que parece, acreditamos que precisamos sempre falar: falar ou morrer entalado; falar ou esquecer; falar ou deixar a boca perder a função; falar ou sufocar. Falamos tudo e sobre tudo. Ou melhor, sobre quase tudo. Na nossa lista interminável de palavras, esquecemos as óbvias. Aquelas palavras que todo mundo finge esquecer; porque se não falamos, conseguimos fingir que miséria, a crueldade, o racismo, a intolerância, o machismo, e tantas outras perversidades, não existem.
Então, já que é para falar, falemos do óbvio. Falemos do óbvio, nesse mundo de pernas para o ar. Nesse mundo as avessas. Nesse mundo nosso. Nesse mundo que um dia foi do Eduardo, o grande Galeano, que abriu as veias da América Latina como ninguém e disse o óbvio, que todo mundo teima em não dizer... O óbvio que fingimos não existir, mas que existe e faz vítimas todos os dias:
Na infância:“Dia após dia nega-se às crianças o direito de ser crianças. Os fatos, que zombam desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana. O mundo trata os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua. O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo. E os do meio, os que não são ricos nem pobres, conserva-os atados à mesa do televisor, para que aceitem desde cedo, como destino, a vida prisioneira. Muita magia e muita sorte têm as crianças que conseguem ser crianças” (p. 11).
Pela pobreza: “Até vinte ou trinta anos passados, a pobreza era fruto da injustiça, de denunciada pela esquerda, admitida pelo centro e raras vezes negada pela direita. Mudaram muito os tempos, em tão pouco tempo: agora a pobreza é o justo castigo que a ineficiência merece. A pobreza sempre pode merecer compaixão, mas já não provoca indignação: há pobres pela lei do jogo ou pela fatalidade do destino” (p. 33).
Em razão do racismo:“Nas Américas e também na Europa a polícia caça estereótipos, imputáveis do delito de trazer uma cara. Cada suspeito que não é branco confirma a regra escrita, com tinta invisível, nas profundidades da consciência coletiva: o crime é preto, talvez marrom ou, ao menos, amarelo” (p.45).
Pelo machismo histórico: “A mulher, nascida para fabricar filhos, despir bêbados ou vestir santos, tradicionalmente tem sido acusada de estupidez congênita, como os índios, como os negros. E como eles, tem sido condenada aos subúrbios da história. A história oficial das Américas só reserva um lugarzinho para as fiéis sombras dos figurões (...). Raramente são mencionadas as mulheres européias que também foram protagonistas da conquista da América ou as nativas que empunharam a espada nas guerras de independência (...). E muito menos se fala nas índias e nas negras que encabeçaram algumas das muitas rebeliões da era colonial. São invisíveis: só aparecem lá de vez em quando e isso procurando muito” (p.71).
Nas cadeias, nas prisões: “(...) as democracias latino-americanas têm seus cárceres inchados de presos. Os presos são pobres, como é natural, porque só os pobres vão para a cadeia em países onde ninguém é preso quando vem abaixo uma ponte recém-inaugurada, quando se leva à bancarrota um banco depenado ou quando desmorona um edifício sem alicerces” (p. 95).
Na ditadura ou nos pedidos por sua volta: “Nos anos 60 e 70, os militares tomaram o poder. Para acabar com a corrupção política, roubaram muito mais do que os políticos, graças às facilidades do poder absoluto e à produtividade de suas jornadas de trabalho, que todos os dias começavam bem cedinho, ao toque da alvorada. Anos de sangue e sordidez e medo: para acabar com a violência das guerrilhas locais e dos fantasmas vermelhos universais, as forças armadas torturaram, violaram e assassinaram a torto e a direito, numa caçada que castigou qualquer expressão da aspiração humana por justiça, por mais inofensiva que fosse” (p. 208).
Há tantos óbvios, em Galeano e na vida em sociedade, quanto há medos, angústias, desigualdades, xenofobia, genocídios. Há tantos óbvios quanto silêncios. Tantos silêncios quanto vergonha. Mas, afinal, somos isto. Somos o machismo, somos a corrupção, somos a tortura, somos o racismo. Somos o que for preciso se o nosso privilégio estiver garantido; se o nosso delírio de ambição for possível. Somos isso. Aprendemos a ser. Contudo, não precisamos seguir assim.
Com Galeano digo o óbvio, desejo modificá-lo, permito-me ao delírio da esperança: “Se o mundo está, como agora está, de pernas pro ar, não seria bom invertê-lo para que pudesse equilibrar-se em seus pés?” (p. 345)
Vamos à luta, complexa e diária, de mudarmos a nós mesmo e ao mundo.
Fotos do livro:
Referência:
GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Por Alegre: L&PM Editora, 2015.