Minha estante é cheia de crianças. Crianças que fui. Crianças que nunca tive a chance de ser. Mas, principalmente, crianças que eu desejo que existam: existam e resistam em suas próprias infâncias. A minha estante está cheia de crianças feitas sonhos; criança-flor, criança-poder, criança-magia, criança-aventura; criança-desejo, criança-coragem; criança-movimento. Minha estante está cheia de crianças, que muitas crianças não terão a chance de ser... E de quem é a culpa?
Você, assim como eu, de alguma maneira deve ter comemorado o dia das crianças. Talvez você tenha filhos, netos, sobrinhos ou alguma criança que encha sua vida de ternura e loucura; talvez você os tenha visitado e até presenteado, ou apenas desejou um dia feliz. Talvez, você tenha trocado a foto do perfil, tenha se lembrado de sua infância e pensado em como “as crianças de hoje nunca saberão como era”. Mas eu lhe pergunto: e nas crianças da estante, você pensou nelas?
As crianças da estante são livres. Elas lêem e transportam-se para outras vidas e fazem história; viajam e conquistam mundos. Inclusive esse: o nosso. As crianças da estante brincam; elas podem sonhar. As crianças da estante têm medo, todavia, o superam. Elas gritam seus desejos e se deliciam no pique pega das vontades. As crianças da estante têm espaço para serem crianças dentro e fora da estante.
Porém, na estante, existem as crianças de fora. Elas até vivem na estante, contudo, vivem, principalmente, fora delas: são as crianças que trabalham como escravas em plantações de cacau; são crianças que trabalham catando latinhas, vendendo balas; são crianças que roubam. Porque crianças que roubam continuam crianças, o que muda é a infância que lhes foi furtada pelas desigualdades.
A estante, ultimamente, se transformou e as crianças que nela vivem, agora, são bruxas, fadas, rainhas; conquistadoras, guerreiras, sereias: não há gênero para serem o que desejam ser. Há uma infância e mil experimentações. Rosa para meninos e meninas, azul também. Meninos dançam e meninas lutam; o contrário também.
No entanto, na estante, também existe as histórias das crianças de fora. Estamos em 2016, mas elas ainda existem: atormentadas pelo desejo de serem o que são; aprisionadas nos estereótipos arcaicos da mente adulta. Meninos menosprezados porque querem cuidar da pequena boneca; meninas ridicularizadas pelo skate e jeans rasgado. Sofrimento e dor pelo simples fato de serem crianças livres dos nossos preceitos tortos e nos nossos preconceitos que matam.
A minha estante está repleta de crianças. Crianças que poderiam ser felizes, contudo, que estão sofrendo pelo mundo. E eu nem falei das crianças pelo mar, fugindo da guerra, angustiadas pela necessidade da sobrevivência; não falei das crianças com deficiência, das quais teimamos em apenas sentir pena, sem enxergar o quanto são inteligentes e, em muitos casos, autônomas. E eu nem falei das crianças que sofrem abusos sexuais ou que são espancadas, sem que ninguém denuncie.
Afinal, não há o que fazer... Ou há?
Hoje, quero falar das muitas crianças que estão bem perto de você; talvez, elas estejam na sua casa. Talvez sejam as crianças que você teima em chamar “menores”. Talvez seja... Talvez, talvez. Só você sabe. Quem são elas? Pergunte-se: quais infâncias você tem sufocado?
Minha estante é cheia de crianças. Crianças que fui. Crianças que nunca tive a chance de ser. Mas, principalmente, crianças que eu desejo que existam: existam e resistam em suas próprias infâncias. Inventadas e reiventadas pela imaginação e pela loucura da liberdade. A minha estante está cheia de crianças feitas sonhos; criança-flor, criança-poder, criança-magia, criança-aventura; criança-desejo, criança-coragem; criança-movimento. Minha estante está cheia de crianças, que muitas crianças não terão a chance de ser... E de quem é a culpa?