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Desbravando Nós: Perdidos em sombras

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Estamos próximos de encerrar mais um ano. Contudo, quem é que encerra o tempo? 

Enquanto crianças, o tempo não faz total sentido para nós. Ontem, hoje e amanhã misturam-se, sobrepõem-se.  Dançam juntos como se fossem um. Os dias passam. E todos são dias de ser.  Até que nos ensinam a dividi-los e hierarquizá-los em dias úteis e inúteis, produtivos ou não. Até que nos mostram como é possível mergulhar em nossas próprias sombras, dividindo o indivisível. Vivendo de memórias rasgadas.
O tempo capitalista pode ser retalhado: horas de estudos, tempo de trabalho, períodos de formação. Tic-tac. Tudo para ser alguém, sem nunca ser você.  O tempo de vida, porém, não segue o mesmo compasso. Não faz tic. Esqueceu-se de tac. A vida não é feita de segundos ou séculos. A vida é feita de memórias que nos permitem ser, de Mia Couto, o "todo de uma vida só" (pág. 53), sem que se precise morrer um pouco a cada contagem, a cada virada.

"A vida é indivisível", foi o que eternizou na imensidão Quintana, nosso poeta. Mas o relógio continua a rodar. Os ponteiros marcam nossa eterna mania de dividir.  Perdemos os bocadinhos de prosa que fazem da vida poesia, da pedra flor. Perdemos o beijo bem dado, a mão entrelaçada, a partilha; esquecemos de como é abrir a boca para gargalhar e do que é contar... Felicidades e histórias, dinheiro não. Esquecemos da velhice. Da paz da varanda de frangipani. Da “paz de pertencer a um só lugar”, da “tranqüilidade de não dividir memórias” (p. 53).

Nós esquecemos. Perdidos num vazio de ponteiros que para nada apontam. Vamos perdendo, para os dias, meses e anos, aquilo que nos torna humanos. “Sofremos com a guerra, haveremos de sofrer a Paz” (p. 107). Pois nós esquecemos. Porque nós esquecemos. Esquecemos e devagarinho, acompanhando o ponteiro do relógio, mergulhamos e afundamos nas sombras de nós mesmos. Na imensidão do nosso vazio. Na eternidade que com ansiedade aguardamos, porém, que esquecemos de viver.

Presos em frestas de calendários, em dias que se inutilizam pela desesperança...  Esquecemos. Esquecemos que “o que se encontra nesta vida não resulta de procurarmos” (p. 40) sempre, mas dos passos firmes de nossa inconstância. Inconstância não é perda, como lhe ensinaram. Errante é o que vaga até seu próprio caminho encontrar. Foi esta a razão que ali me prendeu. A razão que me trouxe aqui a lhes falar dessa história. “A mesma razão que me prende ali, na varanda do frangipani: me abasteço de infinito, me vou embriagando. Sim, eu sei o perigo disso: quem confunde céu e água acaba por não distinguir vida e morte” (p. 48). Mas eu lhes convido a submergir das suas próprias sombras de tempo.

Não tenha medo do céu e água enxergar unidos.

A vida, se vivida dentro dos relógios, pelo mero capital, nos transforma em doentes sãos. Atormentados pelos sonhos feitos pesadelos. Aleijados “desse órgão que segrega as matérias do sonhar”. Deixando a vida acontecer na ordem da tristeza, encerrados num poço úmido pelo desespero. Diz Mia: primeiro acaba-se o riso, “depois, os sonhos; por fim, as palavras” (p. 124). E nós ainda mais perdidos nas guerras. No ódio. No preconceito. No machismo. Na homofobia. Nas sombras que nossas sombras produzem e reproduzem.

Um texto triste, num momento único de esperança universal, você vai dizer. Um texto de sonho, eu diria. O sonho de nos vermos, juntas e juntos, emergindo destas sombras. Fazendo história. Vivendo a revolução dos afetos. Afetando-nos pelas memórias. Enxergando-nos. Vivendo o sonho dos vôos.

Porque “o voar não vem da asa” (p. 124). O voar nasce da utopia de enxergar infinito o horizonte, sem perder a coragem de seguir nessa inexplicável e indivisível caminhada.

Esqueça os ponteiros. Voe.

Livro citado:

COUTO, Mia. A Varanda do Frangipani. São Paulo: Companhia das Letras, 2007

Fotos:









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