Se esse chão que pisas pudesse dizer-te... O que diria? Quais histórias contaria? Quantos assombros e receios a compartilhar? Lá em Farinhada, cidadezinha inventada, e tão real, de Maria Valéria, o chão conta causos. Mil proezas. Proezas de homens que morreram pela revolução. Mulheres que revolucionaram suas próprias vidas. Homens que eram suas próprias chagas e as chagas de outros. O chão esfarinhado do findo sertão, na Ditadura. O chão que conta as enrolações da existência.
Préa... O menino que outro nome não tinha. Na cidade grande o chamariam de rua e como aqui seria, Preá compunha a paisagem. Ninguém percebia nem presença, nem falta. Preá era menino invisível. Preá também não via muito. Enxergava o almoço, a janta. E os favores para consegui-los. Não precisava de contrato, nem pagamento. Preá, “fraquinho, enfezadinho, como todo filho da miséria” (p. 15). Preá enxergou pela primeira vez ao sentir paixão... Paixão que fez o menino coragem subir no alto da igreja para provar amor. O amor Preá viu partir... ficou a visão: “o olhar de Preá, liberto, encontra o horizonte. Lá de cima passeia, vaga e vê”. Préa, filho da miséria descobre a vastidão do mundo. Vasto... E quase inalcançável para os filhos de uma mesma miséria. A humana.
Maria Raimunda e Aurora dos Prazeres. Mulheres. Em comum: a vida que pesava. A coragem que surgia. Filhas da sequidão da terra. Secando-se em corpo, alma, mas nunca em coragem. Mulher de uma bravura que só. Menina beata, sempre ao lado dos seus. Enfrentadoras de tiranos. Maria Raimunda, com sua raiva, que dava coragem e força. Aurora dos Prazeres, com sua bondade, que coragem e força davam. Representantes de si. E de todas. Das mulheres que lutam, que não arredam o pé. Fazendo sempre crescer as “vozes de todas as mulheres que já sentiram uma injustiça nessa vida” (p. 41). Duas mulheres. E suas histórias que arrepiam o corpo, que fazem tremer os tiranos que esquecem: o poder também é nosso.
Dona Eulália, outra. Dita pelo chão, refeita e desfeita em seu era uma vez. Ela, mulher de tirano, era toda bondade. E sabia quantas chagas as maldades do marido causavam. Queria curá-las. Porém, mulher de tirano sente medo. Aprende a sentir. Vai perdendo algo... Não consegue mais levantar a voz. Até que, novamente, diz sua palavra. Dona Eulália aprendeu a submissão, esqueceu o que era sua liberdade. Pegou gosto quando a viu de novo, nascendo de lugar absurdo, das chagas que o próprio marido criara. Na ausência das malvadezas dele, de sua distância, fez bondade mais que bondades. Lembrou o que era justiça. Deu aos trabalhadores o que lhes era de direito. Não emprestou nada. Sabia que tudo pertencia aos que produziam migalhas daquela sequidão. O tirano, no entanto, sempre retorna. Finge-se de bom: esmaga. Há algo, todavia, que ninguém em Farinhada poderá esquecer: o tempo em que dona Eulália foi feliz. O tempo de justiça naquela terra. O tempo de justiça pelas mãos de uma mulher.
Pai e filho: nascidos com o sonho da liberdade. Aprendizes desse sonho. Corpos esfacelados, mas combatentes. Heróis invisíveis. Para alguns, vilões. Esperançosos: o sonho da justiça. A Ditadura quebrou do pai ossos e asas. Do filho, tirou o sangue. Gota por gota. Eles eram a crença em um mundo outro. Eram a fuga da vida feita injustiça e sequidão. E Farinhada cria. Havia algo naquele lugar que fazia com que cressem: um padre contra os latifundiários. Um herói de guerra. Todos vencedores da própria existência. Uns partindo, outros ficando...
Conta-se que Farinhada, aquele lugar perdido entre areia e histórias, é tão vasta e irreal que existe em todos os lugares. Dizem. Ele diz: o chão. Se esse chão que pisas pudesse dizer-te... O que diria? Quais histórias contaria? Quantos assombros e receios a compartilhar? “Creio ter compreendido que nisto consiste o serem humanos, em poderem ser narrados, cada um deles, como uma história” (p.13).
Referência:
REZENDE, Maria Valéria. Vasto Mundo. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2015.
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