Porão. Escuridão. Loucura. Você imagina o que é viver enclausurado? Preso? Amarrado? Defecando no chão? Sendo drogado sem nem ao menos ter ideia de qual droga te oferecem? Você imagina a cama fria? As grades nas janelas?
Você imagina o tamanho da violência?
Uma. Duas. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito. Nove. Dez.
Esse foi o número de vezes que Helena Gayer esteve nos porões da loucura brasileira. Esse foi o número de vezes que ela esteve internada em clínicas psiquiátricas. Ou deveríamos dizer que delas foi prisioneira?
Loucos: assim chamamos a todos que têm algum transtorno que não sabemos explicar. Loucos: também usamos, corriqueiramente, para falar de qualquer pessoa que, por segundos, foge de um padrão estabelecido. Loucos? Nós que não pensamos no peso de uma palavra. Na dor que ela carrega para tantos que seguem tentando se achar em si.
Helena foi diagnosticada com transtorno bipolar aos 21 anos. Talvez, se você soubesse as marcas que carrega uma pessoa bipolar, não mais usaria esse transtorno como uma brincadeira clichê. Helena e as pessoas com tal transtorno não enfrentam pequenas alterações de humor ao longo do dia, algo comum a todos. Elas passam de uma fase depressiva à assintomática; de uma fase assintomática à mania. O contrário também acontece.
Depressão e mania: tristeza profunda e euforia máxima. Tristeza e euforia que cegam. O mergulho em dois extremos.
Helena conta, principalmente, sobre seus surtos de mania. A forma como vagava sozinha pela cidade, confiando em qualquer pessoa, sendo por vezes violentada. Violentada de muitas formas: por homens que viam em seu estado de confusão uma chance de transa; por religiosos que nela viam a encarnação de seus demônios; nos olhares tortos e de julgamento que desprezavam sua dor.
Helena conseguiu, com todos seus limites, no seu ritmo, dar cor e tom à vida. Ao seu modo, criou mecanismos de luta onde nós, como sociedade que se crê sã, criamos barreiras. Não desistiu da faculdade de jornalismo. Não desistiu da possibilidade de ingressar numa carreira pública. Ela conseguiu. Porém...
Quantos não conseguem?
Quantos ficam pelo caminho?
Quantos morreram nos porões dos hospitais psiquiátricos?
Quantos continuam morrendo diante de um descanso que não é só deles, dos poderosos, mas nosso, enquanto sociedade civil?
Quantos não sobrevivem para escrever um livro?
Quantos nunca serão capazes de contar suas histórias?
Acredito que, muito além de nos sensibilizar com sua história, Helena nos escreve um manifesto sobre a invisibilidade e sobre a necessidade de nos unirmos aos que lutam contra a constituição cruel e desumana dos manicômios.
Um manifesto sobre a necessidade de sermos donos de nossas próprias histórias, independente de quem somos. Um manifesto sobre a necessidade de lutarmos pelo sonho democrático de que todos também sejam, independente de quem são.
Referência.
GAYER, Helena. Me diga quem eu sou. São Paulo: Objetiva, 2017.
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