A história despertou a menina, a menina que não tinha palavra. O mergulho no extraordinário despertou nela a palavra, a palavra que ainda se fazia criança sem voz. A menina sem palavraé, em Mia Couto, o que nossas crianças parecem, tantas vezes, serem para nós: pessoas sem voz, humanos incompletos, sem direito à palavra que nasce de seus próprios sonhos.
“Quando lembrava as palavras ela esquecia o pensamento” (p. 33). Quanto a nossas crianças, fazemos com que esqueçam pensamentos e interrompemos suas palavras. Sempre sabemos o que é melhor para elas. Será?
– Fala comigo, filha! – Porém, não queremos escutar. O nosso dever, de adultos, é o de sermos escutados. “A menina beijou a lágrima” (p.33): que a engula! É tudo por sua educação: nada vem sem dor. Por que não com o amor? Quem ama corrige. Melhor apanhar em casa do que na rua. Melhor, melhor, melhor... O silenciamento das crianças.
A menina que não tinha palavra só precisava de uma história; só precisava do direito de terminá-la ao seu modo. Precisamos deixar que nossas crianças sejam delas próprias também; que experimentem, que ousem; que tenham sempre mãos firmes no lápis com que escrevem suas histórias. Suas palavras não podem ser apagadas com a desculpa de educar e de não criar um pequeno narcisista. Há educação no respeito à palavra. É sempre mais fácil respeitar quem nos oferece, desde o berço, respeito.
Em nossa pressa de educar sem empatia e respeito, perdemos, como os adultos de Mia, as crianças “sonhadeiras”, como Tiago (p.62), para implantarmos neles nossos próprios sonhos e preconceitos; tiramos a vida de suas infâncias tão diversas e singulares. Diga você, responda ao poeta: de que vale ser criança se nós, adultos, impedimos que a palavra da infância seja das crianças e nelas dê frutos?
Ah, Mia. Diga a eles: “criancice é como amor, não se desempenha sozinha. Falta(va) aos pais (ou a qualquer adulto) serem filhos (ou crianças), juntarem-se miúdos com o miúdo. Falta(va) aceitarem despir a idade, desobedecer ao tempo, esquivar-se do corpo e do juízo”. (p. 131).
Houve um tempo em que “a morte se tornara tão freqüente” na vida das crianças que “só a vida fazia espanto” (p.54). Chegou um tempo em que a humilhação, o silêncio e a dor tornaram-se tão frequentes nas vidas das crianças que, ao que me parece, apenas a compreensão, a empatia e a escuta poderão fazer espanto.
Todas as crianças são nossas. Mas só podem ser verdadeiramente nossas, caso deixemos-nos guiar por suas vozes. Pelos desejos que as mobilizam. Pela dor e a pobreza que consome umas, pelos desesperos que corroem outras. Pelas suas respostas diante da vida.
Antes de levantar a mão ou a voz, escute até mesmo seus silêncios: escolha a resposta que vem das crianças.
Livro citado:
COUTO, Mia. A menina sem palavra. São Paulo: Boa Companhia, 2013.
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