August era um garoto comum de dez anos, a não ser por um simples fato: ninguém é simplesmente comum. Há sempre algo para além do sabor do sorvete, dos arranhões pelas quedas de bicicleta; além dos jogos de Xbox e dos filmes preferidos. Existe algo além daquilo que os outros usam para nos definir; no caso de Auggie, os outros o definiam pela síndrome genética que lhe causou uma deformidade facial, além de outros problemas de saúde. Poucos o enxergavam através da diferença. Porém, há sempre algo além. Algo que o tornava extraordinário.
Há algum tempo que tenho pensado em Auggie e em tudo que ele me ensinou através de um pouco mais de 300 páginas; tenho pensado em como nossos olhares definem os outros pelo que não acreditamos potente. Como nosso olhar define, castiga, oprime, faz sofrer. Como nosso olhar sufoca os outros, principalmente aqueles que são diferentes de nós.
August dizia que se “encontrasse uma lâmpada mágica e pudesse fazer um desejo, pediria para ter um rosto comum, em que ninguém nunca prestasse atenção. Pediria para poder andar na rua sem que as pessoas me vissem e depois fingissem olhar para o outro lado” (p. 11). Ele aprendeu a se acostumar com as caretas. Mas não deveria. Não deveria haver caretas. Os olhares não deveriam penetrar para cortar e esmagar.
August, que foi à escola, pela primeira vez, para ingressar no quinto ano, teve que enfrentar o olhar das outras crianças... Olhares já perversos e quase sempre influenciados por adultos perversos. August enfrentou o mundo de muitas maneiras distintas e o fez com a coragem que ninguém deveria precisar ter, mas que as minorias, ou as chamadas minorias, sempre precisaram adquirir. A coragem de enfrentar o ódio não deveria ser necessária, porque não deveria haver ódio pelo sensacional fato das pessoas serem como são; de sermos como precisamos ser, para existirmos em nossa plena maneira viver.
Apesar do que os olhares diziam, Auggie deixou crescer em si tudo que havia de extraordinário. Contudo, quantos não são aqueles que ficam pelo caminho, sem a chance de perceber o extraordinário em si? Diga-me: quantos os seus próprios olhos já assassinaram? Quantas pessoas os seus preconceitos já fizeram padecer?
Há algum tempo que tenho pensado em Auggie e em tudo que ele me ensinou através de um pouco mais de 300 páginas. Há algum tempo tenho pensado em meus privilégios de pessoa branca, hétero, cristã, sem deficiência...
Há algum tempo, tenho pensado que há algo extraordinário em todos nós. Todavia, nem todos têm sua chance de dizer as bonitezas de suas palavras, de ditar os rumos de suas próprias vidas. Auggie e tantos outros personagens dão voz a estes; porém, é preciso mais. É preciso lutar, não temer. É preciso um olhar outro.
August Pullman escreveu, certa vez, que “Toda pessoa deveria ser aplaudida de pé pelo menos uma vez na vida, porque todos nós vencemos o mundo” (p. 313). Eu diria, no entanto, que todos nós deveríamos nos colocar de pé, ao menos uma vez na vida, por aqueles e, principalmente, com aqueles que ainda não venceram. Eu diria que este é o extraordinário em nós.
Livro citado:
PALACIO, R.J. Extraordinário. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2013.
Outras fotos: