Título: Sombras da Água
Autor: Mia Couto
Editora: Companhia das Letras
ISBN: 9788535928044
Ano: 2016
Páginas: 384
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Sinopse:
“Sombras da água” retoma a história de Mulheres de cinzas, romance histórico encenado à época em que o sul de Moçambique era governado por Ngungunyane, o último grande líder do Estado de Gaza, em fins do século XIX. Ferido, o sargento português Germano de Melo é levado ao único hospital de Gaza, sob os cuidados de Imani, sua amada e responsável pelo tiro que lhe esfacelou as mãos, do pai e do irmão da garota africana e de uma amiga italiana. Nesta jornada, eles encontrarão outros percalços e personagens memoráveis — característicos das obras de Mia Couto. Alternando as vozes de Imani e Germano, o escritor apresenta duas visões de mundo diferentes, porém inevitavelmente envolvidas nesta trama.
Resenha anterior:
Resenha:
Resenha sem spoiler do livro anterior.
“Tudo começa sempre com um adeus”, afirma Imani, na presente obra. É exatamente isso que encontramos em Sombras da Água: adeus atrás de adeus e recomeços. Imani e Germano, após os acontecimentos do livro anterior, tentam se reconectar, recomeçar, após um adeus à terra da protagonista. Porém, o caminho para esse contato mais profundo ainda é árduo.
No coração de Imani, ainda arde a angústia de amar um colonizador, um branco, para alguns, até mesmo um inimigo. Para Germano, homem apaixonado até o último fio de cabelo, também restas dúvidas: será Imani realmente apaixonada na mesma proporção que ele? Será ele apenas um passaporte para fora daquela terra?
As angústias e dúvidas unem e minam o casal; a vida real também. A guerra entre Portugal e o Império de Gaza torna-se cada vez mais brutal. Moçambicanos são mortos aos montes; os portugueses também, ainda que em menor proporção. A terra jorra sangue e grita socorro, as mulheres já não sonham em parir crianças, mas armas poderosas para aniquilação do inimigo. Em meio à guerra; a vida clama por um olhar de amor. Passamos, até, “a sentir saudade do tirano anterior”. Mas a vida segue...
“Essa era a triste ironia do nosso tempo: enquanto em desespero procurávamos salvar um soldado branco, a poucos quilômetros dali se instalara um matadouro de milhares de seres humanos” (p. 19).
Um novo adeus é desenhado e redesenhado; novos começos, alguns nublados, outros terríveis, são traçados. “Tudo sempre começa com um adeus”, mas isso não significa que seja bom. Muitas vezes, a vontade é permanecer no passado, no imutável, no estranho que era simples, que o diga Imani e Germano. A vida, porém, é um rio que corre; mesmo com barreiras, segue em frente.
Por essas linhas, Mia Couto aprofunda o viés romântico de sua obra, mudando de lado a faceta mais poética de sua trilogia. Se no livro anterior a poesia estava no encontro com a cultura moçambicana, aqui está no amor que emana e mingua, que morre e renasce. Apesar das características diferentes, a qualidade é mantida; a genialidade também.
Em Sombras da Água, Couto flerta muito mais com o romance histórico do que no primeiro exemplar; o Reino de Gaza, as lutas, os embates históricos e os personagens icônicos da história moçambicana e portuguesa aqui estão presentes. Com algumas licenças poéticas, o autor traça um retrato bem fiel dos acontecimentos daquela região, dando ao livro um ar de aula de história misturada com encantamento. Aliás, ensina muito mais sobre a história africana do que nossas escolas, ainda tão falhas nesse dever acadêmico.
“Não são apenas terra que os rios atravessam. Este rio por onde viajávamos cruzava territórios de fogo, lavrados pela fome e pelo sangue. Mas havia uma outra distância que a nossa canoa ia vencendo: navegando por entre as espessas florestas a guerra parecia-nos alheia e longínqua” (p. 32).
A narrativa, por sua vez, é feita de forma intercalada, por Germano e Imani. Ele conversa com seu superior através de cartas, dando um aspecto mais documental ao livro. Contudo, em boa parte das vezes, as cartas oficiais também ganham um ar mais confessionário, sentimental, onde Germano esparrama seu amor. Imani, através da narrativa em primeira pessoa, nos dá uma visão única sobre a guerra, cultura e religião. Seus capítulos são os mais interessantes, principalmente por se sentir uma “negra que não é negra”. A abordagem desse lado psicológico dá espaço para muitos questionamentos, inclusive sobre a colonização e aculturação.
Para completar o trabalho maravilhoso, o livro conta com uma excelente parte física. A capa é belíssima e dialoga perfeitamente com o conteúdo do livro; a diagramação, por sua vez, é simples, mas altamente confortável, mantendo o padrão da obra anterior. A revisão está perfeita, assim como o trabalho editorial. Ou seja, temos mais um trabalho com o alto padrão de qualidade da Companhia das Letras.
Diante de tantos aspectos, resta-me apenas indicar essa obra. Mergulhe na série e na história moçambicana; vocês vão se apaixonar por cada detalhe dessa trilogia.
“A música é a língua materna de Deus” (p. 53).