Eu o paquerei por muito tempo. Entre tantos livros, seu laranja me chamava. Então, um dia, tivemos um encontro definitivo: a poesia de Leminski e eu. Como quem há muito aguardava o encontro: devorei-a. Não como quem devora e sacia-se; mas como quem devora, transborda e precisa dizer aos outros o motivo de seu transbordar...
Raramente é possível falar com beleza sobre o que nos fere. A angústia e a dor imprimem seu pesar em nosso corpo. Em nossa alma. Em nossas palavras. Imprimem em cada um a marca de algum sofrimento que, aos poucos, nos mata. No entanto, se há algo que rouba a poesia que habita em nós, a própria poesia traveste-se de esperança. É possível um mundo outro, nascido de versos. Nascido em nós. Por isso, peço licença aos que passam ao largo da poesia. Peço, com Leminski, licença para, nestas linhas, falar de poesia e esperança:
“Haja hoje p/ tanto hontem” (p. 298). Leminski palavreou esse sentimento em mim tão latente. Haja presente para tanta sombra de tenebroso passado. Haja esperança para suportar tamanha aflição. São tempos difíceis. E as mazelas de nosso passado, de autoritarismo, censura e repressão batem às nossas portas. Haja hoje... Há. Embora nosso ontem avance e queira-nos de volta, queira nossos direitos e conquistas. Queira nossa liberdade... Ainda há hoje. E se hoje ainda há, a esperança persiste. E luta. Porque se
“sombras
o vento leva
sombra
nenhuma dura” (p.237).
Sombra nenhuma resiste ao nosso sonhar.
Ainda assim há medo. Medo do que virá. Medo daquilo que nos para e impede de seguir. Que tira de nós a voz. O canto. A força de dizer nossa própria palavra. De gritar. Rebelar-se. Transgredir o que não mais nos veste a alma. O canto, lembrou-me Leminski, “o canto nunca deixa de cantar” (p. 376). Apesar de todos, dos malditos que interrompem o ressoar de nossa própria melodia, “o canto gera outro cantar” (p. 376). E, juntos, cantamos nossa força. Nossa decisão. Nossa escolha. Somos nossos, somos nossas, da cabeça aos pés. Há esperança. É possível seguir nosso caminho. Gritar. Rebelar-se. Refazer-se.
E, mesmo que com medo de nossa força, coloque-nos em vasos feitos celas, em casas feita deveres, em escravidão feita destino, ainda assim, transgrediremos. Ainda assim levantaremos. Ainda assim nos ergueremos: “até para a flor no vaso/ um dia chega a primavera” (p. 309). E se há primavera, há esperança. Há motivo para levantar e lutar.
Ainda há esperança. Você consegue ver? Ainda há hoje para o ontem que avança e oprime. Ainda há vento que leva sombras. Ainda há primavera, mesmo para flores em vasos. Ainda há algo em que podemos depositar nossa esperança em um mundo outro. Ainda há tempo para levantarmos e resistirmos ao que nos é imposto. Ainda há tempo.
Como diz Alice Ruiz (p. 410): “Tudo a seu tempo. O tempo agora é de poesia”.
E se há poesia, reside em nós a esperança...
Referência:
LEMINSKI, Paulo. Toda Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
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