No mundo há muitas mulheres. Embora tentem nos dizer que há um tipo de “mulher de verdade”, um modelo a ser seguido: somos muitas. Somos todas. E tudo, e todas, ao mesmo tempo.
Lucia Berlin era uma dessas mulheres, como nós: tudo. Ao mesmo tempo, sem tempo. Uma mulher que escreveu sobre mulheres. Mulheres que eram ela mesma; que são, definitivamente, todas nós. Da escola religiosa à clínica de desintoxicação e aborto. Mulheres: que vivem suas realidades machucadas, despedaçadas. Irônicas. Engraçadas.
Todas nós: feitas sonho, medo, ternura, espiração. Força, coragem. Resistência.
Quinhentas páginas. 500 páginas. Páginas repletas de mulheres que pulsam: no amor, na dor, no desespero, na angústia da sobrevivência. Na dúvida sobre a existência. Mulheres que nos olham e nos desafiam a olhá-las, a enxergá-las, a compreendê-las em meio ao caos, ao desequilíbrio, ao que não pode ser moldado, ao que não pode ser explicado.
Só há o engasgo, o nó na garganta. A asfixia. A sensação de que não há compreensão. A necessidade de sairmos do nosso lugar, do nosso olhar. A necessidade de encontrar outras. Diversas. E tão iguais a nós.
Manual da Faxineira, não saberia defini-lo de outra maneira, é um livro sobre mulheres. Uma mulher. Todas. Mulheres gritando por socorro. Mulheres, salvadoras de si, sem heróis. Mulheres: destroços de flor, diário de esperança, manual de risadas. Mulheres de tudo, em tudo. Produzindo seus próprios contornos, entre amarras e brechas de liberdade.
Não seria capaz de, nesse pequeno exercício de perder-me nessas incríveis páginas, dizê-las todas. Não seria capaz de expressar cada pequeno terremoto que essas mulheres causaram em mim, em cada pequena lágrima, em cada pequena risada. Apresento-as, então, a vocês, na esperança que as enxerguem, e um dia as conheçam, pequenos traços de tudo, de todas, ao mesmo tempo. O caos de nossa existência solitária e conjunta. Extraordinária. Singular.
Mulher, antes meninas. Na escola religiosa ou no consultório do avô. Envolvidas pelos preconceitos: etnia, fé, religião, gênero. Sociedade cruel. Preconceitos legitimados na escola, na família. Vergonha, um cadinho de dor. Silêncio. O silêncio que desde cedo nos cerca, nos aterrorizada, que nos esconde dentro de nós mesmas. Não por nos amarmos. Por medo, vergonha de dizer nossa própria palavra. Invisíveis. Incapazes.
Antes menina, mulher. Desemprego, dor, submissão, amor. Facetas de uma vida. Professora, faxineira, enfermeira, madre. Louca, alcoólatra, estrangeira, abandonada. Rótulos. Desafiadas por seus caminhos, por suas histórias, suas escolhas. As escolhas que fizeram delas. Por elas. Pelos julgamentos. Pelos olhares que vieram depois. Choro. Lágrimas. Recuperação. Os ciclos intermináveis de uma vida que não se permite viver. Incendiada. Caótica. E bela, engraçada, contagiante.
Uma menina feita mulher. O desespero do aborto clandestino. O sofrimento. A desintoxicação. A força do apoio entre as mulheres. Os julgamentos que podem ser transformados em ombro, escuta.
Defesa. Coragem.
Resistência.
Sempre retorno a ela, o laço entre nós. Não a largo. E Lucia Berlin, do trágico ao cômico, em seus possíveis erros e acertos, fez-me lembrar porque ainda creio em nossa resistência.
Em nossa existência, com nossos contornos, a nossa escolha.
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