Em meio a tantos livros, abarrotada de anotações e trabalhos, hoje, escrevo a você. Olhando para uma estante cheinha de medos, sonhos, nostalgia e alegrias, hoje, eu escrevo. Escrevo lembrando de cada texto que aqui compartilhamos. De cada lágrima que derramei escrevendo. De cada palavra apagada e reescrita. Escrevo lembrando de cada devaneio, quando, tomada de esperança, acreditei que cada uma das linhas aqui escritas poderiam contribuir, minimamente, para transformar o mundo em um lugar outro. Em um lugar melhor.
Hoje, escrevo com alivio: por ter dito tudo aquilo que as páginas, de tantos livros dos quais falamos, me fizeram sentir. Hoje, escrevo com esperança: de que algum nó em você tenha sido corajosamente desatado, assim como muitos dos meus foram. Hoje, escrevo com saudade: daquilo que, de alguma maneira, construímos no tempo em que essa coluna esteve no ar. Hoje, escrevo com a alegria de quem escrevendo muda a si, mantendo a fé na possibilidade de mudar o mundo.
Hoje, escrevo com os meninos de Conceição Evaristo, na memória. Nosso primeiro encontro foi com eles e seus tantos olhos d’água. E como falar dos meninos de Evaristo sem lembrar do menino Lázaro, o Ramos? Em sua pele, ele compartilhou conosco suas experiências, seus medos, seus desejos... Sua luta por um mundo que rompa, finalmente, com o racismo estrutural. Hoje, se reconheço meu racismo e acredito que posso descontruí-lo é também porque os li. Um nó que juntos desatamos.
Hoje, escrevo com Galeno e sua paixão pela América Latina. Escrevo com a paixão de quem aprendeu a enxergar as mazelas do seu povo sem nunca perder de vista as utopias. Escrevo com um Galeno que escancarou tantos óbvios, que quebrou tantos silêncios. Escrevo com o Galeno que não me deixa esquecer: somos o machismo, somos a corrupção, somos a tortura, somos o racismo. Somos o que for preciso se o nosso privilégio estiver garantido; se o nosso delírio de ambição for possível. Somos isso. Aprendemos a ser. Contudo, não precisamos seguir assim. Se o horizonte se afasta enquanto andamos, que há de mau? Continuemos caminhando até encontrá-lo.
Hoje, escrevo refletindo sobre as mazelas de nossa história: ditadura, tortura, os porões da saúde mental, a educação para o cabresto. Hoje, escrevo para dizer que nada é impossível de mudar. Escrevo para dizer que para mudar o futuro, precisamos conhecer e reconhecer as mazelas do passado. Escrevo para dizer que a História está cheia de memórias silenciadas. Escrevo para lembrá-la de escutar essas vozes. Vozes do Vasto Mundo, de Maria Valéria Rezende. Vozes dos escravizados, presos e torturados em páginas infelizes da nossa história. Vozes que gritam da Cova 312 e do Holocausto Brasileiro. Vozes que continuam gritando por justiça e por memória. Vozes que silenciamos. Vozes que fingimos não escutar.
Hoje, escrevo com as crianças, com seus faz-de-conta, com suas histórias que nos encantaram. Escrevo com os medos da Chapeuzinho Amarelo, com a ousadia de Soninha – A Pior Princesa do Mundo. Escrevo com a curiosidade da menina que tinha Mania de Explicação, com a saudade do menino que tinha A Mãe que Chovia. Escrevo com o sonho de, um dia, sermos capazes de, assim como os Nada-a-ver, valorizarmos as diferenças e não as usarmos como razão de discriminações e preconceitos. Escrevo com a Malala no coração, acreditando que as meninas de todo o mundo poderão escrever suas próprias histórias. Escrevo com o furacão das mudanças de Uxa, ora Fada, ora Bruxa. Escrevo acreditando em um mundo que respeite nossas crianças.
Hoje, escrevo ao lado delas. Principalmente delas. Das mulheres, escritoras, personagens, leitoras, que fizeram dessa coluna o diário de uma feminista em construção. O diário de uma mulher cheia de medos, dúvidas, dores e raiva. Uma mulher capinando o terreno do seu corpo colonizado. Uma mulher plantando suas próprias flores. Florescendo. Com você, gritei e arranquei o Papel de Parede Amarelo que me aprisionava. Com você, gritei para que Sejamos todos Feministas e me perguntei o que fazer Para Educar Crianças Feministas. Ao seu lado, mulher, fui todas as Mulheres Desiludidas de Beauvoir, as personagens fascinantes do Manual da Faxineira e fiz-me poeira de constelação com Virgínia Woolf.
Com vocês desatei nós, afrouxei outros e enxerguei a necessidade de encarar tudo aquilo que me impede de ser mais. Hoje, escrevo com saudade. Saudade de esperar pela chegada dos livros, dos dias em que encarei folhas em brancos sem saber como dizer cada arrepio que senti. Saudade, saudade, saudade. Hoje, escrevo com saudade. É verdade. Contudo, escrevo, principalmente, com gratidão.
Pelos nós desatados, em processo de se desatar e por todos os que ainda virão: um brinde a nós. À literatura. Ao sonho de sermos mais.