Por muito tempo, apesar de ter consciência do papel social que a literatura carrega, furtei-me da obrigação de tomá-la como um dever. Nunca a reneguei, é claro, mas devo confessar que isso nunca foi o foco do site. Contudo, chega-se a um momento no mundo, no nosso país, na humanidade, que não podemos negar esse papel social. Desconstruir é preciso. Falar apenas, em determinada resenha, que o livro traz críticas sociais é pouco. Era, e ainda é, preciso ir além. Como escritor, professor, blogueiro, resolvi ir além. Desbravar nós é preciso.
Então, a partir de hoje, nasce uma nova coluna no site, um novo olhar. A literatura e arte se farão presentes, mas não apenas como entretenimento, e sim com os papéis transformadores que realmente possuem. As resenhas persistirão, é claro; aliás, ainda serão a maioria. Contudo, precisamos ir além. E para ir além, convoquei uma ajudante, uma sonhadora, uma transformadora de sonhos. É ela quem dará o pontapé inicial, quem fará a bola rolar, quem desatará os primeiros nós. Esperem muitos nós desatados, mas vamos com calma. Um nó por dia, um nó de cada vez. Apresento-vos, então, a sonhadora que desatará o primeiro de muitos nós: Mariane.
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Todos reunidos para ouvir a notícia: minha mãe estava grávida. Vai ser Raquel! Quero Malu! E se for menino? Será e vamos chamá-lo de Mateus.
Nasci, contudo, Mariane.
Mariane, cresci sem grandes restrições; estudei em colégios públicos e até lembro-me do desemprego do meu pai em algumas ocasiões. Recordo-me, também, de uma vez em que, durante alguns dias, só tive um par de sandálias, as quais eu odiava. A comida, porém, sempre esteve à mesa, as roupas lavadas e os brinquedos e cadernos em minhas mãos. Por isso, mantiveram meu nome. Sou Mariane.
Alguns, porém, nascem sem nome; ou deles os nomes são arrancados. Sem água encanada, saneamento básico, comida e educação, inclusive, também nascem. E, de tantas maneiras, chegam às ruas, ganhando novo reconhecimento, identidade única: pivetes são. Os que como eu, e provavelmente você, têm nome, aprendem a não enxergá-los gente, mas furtos. Aprendem a percebê-los vultos, nunca olhos e angústias. Suas histórias não nos interessam, pois eles não são Mariane. Eles não têm nome.
Eu, em minha crença em mim mesma, pensava enxergá-los, sentia pena, sentia medo; mas eles continuavam sem história, menos humanos. Então, através dos Olhos D’Água de Evaristo, a Conceição, pude encontrar os nomes, os caminhos e as histórias. A dor pungente. O grito desesperado. O descaso, o desespero que nunca experimentei.
Eis, pois, do que a literatura e a arte são capazes: quebrar nossas maiores certezas e reconstruir nosso olhar sobre outro, sobre suas lutas; dar voz e coração aos que até nomes negamos todos os dias. Eu tenho nome. Lumbiá, Zaíta, Naíta, Gunga, Beba, Beta, Di Lixão, também. E foi Conceição Evaristo que me ensinou seus nomes e suas andanças pela vida que se cruzam com tantas outras.
Eu sou Mariane e nos livros encontro a ajuda que tanto preciso: a ajuda para olhar outros, sempre tão diferentes de mim. E, a partir de hoje, convido-te a olhar comigo.
Livro citado:
EVARISTO, Conceição. Olhos D’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2015.
Fotos do livro citado: