Não é raro ouvir que o medo é capaz de nos impulsionar; porém, você é mulher, já deve ter-se percebido recuando em situações diversas, provavelmente, por medos que parecem naturais à sua condição de gênero. Será, portanto, que alguns medos são biologicamente femininos? Será que basta a constatação de um sexo para que determinadas condições se instalem em nosso ser?
Simone de Beauvoir, professora e escritora francesa e, até hoje, uma das mais importantes vozes feministas, estudou e expôs as condições da mulher na sociedade e as construções sociais que dizem respeito ao gênero feminino; o resultado de seus estudos e engajamento é vasto, mas, para falar sobre as condutas socialmente construídas e os medos ensinados às mulheres, escolho o livro “A Mulher Desiludida”.
A obra, que teve uma recente edição (2015), na Coleção 50 anos da Editora Nova Fronteira, apresenta três novelas; todas têm mulheres como protagonistas: mulheres e seus medos diante da sociedade que lhes dita tantas regras e posturas. Cada uma delas expõe seus medos e desilusões à sua maneira: uma narrativa, um monólogo e um diário unem-se num grito: “Eles me julgam me condenam e nenhum deles me ouve” (Monólogo, p. 69). Beauvoir faz caricaturas de mulheres que temem ao envelhecimento, ao fracasso profissional, conjugal e materno, a solidão.
“Perguntava-me como se consegue viver quando não se espera mais nada de si” (A Idade da Discrição, p. 45).
Uma leitura simplista poderia facilmente terminar com a ideia de uma autora machista, mas o que Simone de Beauvoir nos apresenta são mulheres que se veem obrigadas a cumprir papéis pré-estabelecidos e, por isso, se desesperam com as novas formas de seus corpos, culpando-se e sendo culpadas, pelas infidelidades masculinas e pelas ausências dos companheiros; ou, até mesmo, pelos caminhos escolhidos por seus filhos. Mulheres sufocadas pelas escolhas que não fizeram e pelas atitudes que tomaram, temendo o abandono; sentindo-se obrigadas a se colocarem umas contra as outras. Mulheres, como eu e você, vivendo numa sociedade sexista, que as molda ao seu interesse masculino.
“Na verdade, estou desarmada porque nunca supus que eu tivesse direitos. Espero muito das pessoas que amo – demais, talvez. Espero e até peço. Mas não sei exigir” (A Mulher Desiludida, p. 102).
Ao criar caricaturas de mulheres desiludidas, solitárias, fragilizadas e desesperada, a autora abre um importante espaço para reflexão sobre a construção e generalização de tais estereótipos. Aquelas mulheres não nasceram para se submeterem a olhares constrangedores sobre seus corpos ou para enfeitar uma casa e serem dispensadas quando chegam a certa idade. Não é biológico ou natural os papéis destinados a elas como mães: há uma clara construção social sobre estes papéis, construções que imunizam homens de responsabilidades e de compromissos determinados; ao mesmo tempo que os empoderam como juízes de nossas escolhas.
O mais importante ao perceber que as personagens são produtos de exigências impostas, assim como, por vezes, nós também somos, é a força adquirida para romper padrões determinantes. É perceber que o medo de sair sozinha à noite não é normal, que apanhar de um companheiro também não é. Encarar o fato que pensar duas vezes antes de vestir sua roupa favorita, temendo assédio, não é normal; sentir-se culpada após um estupro também não. Ter nojo do seu corpo e pavor de suas formas não é normal; competir e desvalorizar outras mulheres também não é. Nada disso é biológico e você pode quebrar estas correntes: você pode fazer isso.
“Eis o privilégio da literatura – disse eu. – As figuras se deformam, empalidecem. As palavras, nós as levamos conosco”. (A Idade da Discrição, p. 57).
Não é raro ouvir que o medo é capaz de nos impulsionar. Portanto, que ele nos impulsione a lutar juntas; que o medo nos impulsione a sermos quem quisermos ser, a protagonizarmos nossas histórias: dentro e fora da literatura.
Livro citado:
BEUAVOIR, Simone de. A Mulher Desiludida. Ed. especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
Fotos do livro citado: