Era uma vez. Uma vez, um menino. Uma vez, uma mãe. Ele, filho da chuva. Ela, a própria gota. Era uma vez todos o filhos de mães. E todas as mães. Mães que chovem. Mães que fazem chover.
“Desde sempre, todo mundo dizia que ele era filho da chuva” (p. 6). Porém, aquele “menino esperto, bem humorado e com idade de mais ou menos” (p. 8), sabia exatamente de quem era filho. E de quem vinham as gotas que lhe inundavam a alma de ternura.
A mãe, mesmo gota, desdobrava-se: era mão, pés, ajuda e coração. Era cobertor e canção de ninar. Mas a mãe, sendo chuva, também era uma “atividade altamente qualificada de âmbito sazonal” (p. 17). E isso queria dizer que só ela chovia. E que partiria para chover o mundo.
Ninguém suspeitava, porém, que a forte chuva, entre gotas, era pranto. Muitos que, suponho, a amaldiçoavam por ser mãe e chuva, não sabiam a dor que havia em seu peito feito água, sempre inundado de saudade do filho.
O menino também sentia saudades. Porém, envolto, talvez, em opiniões dos que dizem que mãe deve sempre estar aqui e lá, o menino perdia cada vez mais a vontade de usar suas palavras. E, mesmo com a chegada de sua mãe-chuva-menina, que caía junto às folhas no outono, seu silêncio era cada vez maior. O silêncio demorou a passar: só voltaria a acreditar nela, a própria chuva, se ela lhe desse a mão, como as outras mães costumam fazem.
A mãe chuva, porém, concebeu-se em outra época. Não era como as outras mães. Ela era chuva, a própria. Capaz de florescer campos. Ela tinha seus poderes. Porém, muitos esqueciam disso, porque ela era mãe. E faziam dela só. Apesar de ser tanto...
Mãe triste; que, de tão triste, numa noite começou a nevar. Floco por floco, em forma de boneco, pronta a dar sua mão ao filho. Porém, “há poucas coisas tão tristes do que ver a própria mãe derreter”. E, aquele silêncio, tão rude e severo, retornou... Tão forte era a dor, que a mãe chuva teimou em não partir naquele verão. Molhou a quentura dos dias, até que foi levada por uma nuvem e sentiu, de novo, o peso do dever de ser mãe e chuva. O peso da saudade.
“Mas, se o verão sempre chega, o outono chega também. O tempo é redondo, como um círculo desenhado com o dedo no ar. E a mãe voltou, entusiasmada, menina, morrendo de saudades do filho. Choveu para procurá-lo, mas não o encontrou”. (p. 44)
A mãe choveu-se por todos os cantos. Choveu-se em casas, janelas, ônibus, caminhões e avenidas. Choveu-se em estádios de futebol e quadras de tênis. Choveu-se sobre piscinas e também barragens. Sobre fazendas, galinhas, cabras. Também sobre os cães e também sobre os gatos. Choveu-se sobre hospitais, prisões e até cemitérios. Porém, nenhuma gota de filho encontrou.
Que surpresa foi sentir, então, as pernas do filho procurado, atravessando-a. Vindas do alto. “Era seu filho, que descia de paraquedas através dela” (p. 56). Chovendo mansa e serena, a mãe chuva sorria para seu filho. E o seu filho devolvia-lhe o sorriso manso e forte de chuva. O menino, agora homem, entendia enfim os sacrifícios da chuva mãe, que, mesmo florescendo-se ao mundo, esteve lá, sendo enxurrada de afeto. Ele precisou ir até o alto, no lugar onde sua mãe sempre esteve, para entender: filho de chuva sofre sim, mas continua sendo filho. E a chuva, às vezes tão longe, levada por suas obrigações de chuva e de mãe, continua sendo mãe. Continua chovendo.
É verão, no entanto, enquanto escrevo, ela parece querer começar a gotear seu amor. Porque as mães que chovem são muitas. Que chovem de muitas formas. Que vão e voltam. Às vezes, não podem voltar. Às vezes, não podem ficar. E às vezes não querem. Porém, continuam sendo. Porque a chuva é como é. E arrasa. E inunda. E floresce. A chuva são todas, chovendo como podem. Chovendo como são. Alagando o mundo com suas formas de ser. E com suas formas de não querer... Ser: precisa ser escolha. Deixem a chuva molhar. Deixem quem é chuva chover-se.
Referência:
PEIXOTO, José Luís. A mãe que chovia. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2016
Fotos: