Título: Venenos de Deus, Remédios do Diabo
Autor: Mia Couto
Editora: Companhia Das Letras
ISBN: 9788535927320
Ano: 2016
Páginas: 190
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Sinopse:
Bartolomeu Sozinho é um velho mecânico naval moçambicano, aposentado do trabalho, mas não dos sonhos ardentes e dos pesadelos ressentidos que elabora em seu escuro quarto de doente terminal. Ele é atendido em domicílio por Sidónio Rosa, médico português. A narrativa entrelaça a vida de Bartolomeu, de sua rancorosa mulher, Munda, da ausente e quase mitológica Deolinda, filha do casal, do dedicado Doutor 'Sidonho', bem como de Suacelência, o suarento e corrupto administrador de Vila Cacimba, um lugarejo imerso em poeira e cacimbas (neblinas) enganadoras. São vidas feitas de mentiras e ilusões que tornam difícil diferenciar o sonho da realidade. Aparentemente, Sidónio veio de Lisboa para curar a vila de uma epidemia. Mas é o amor pela desaparecida Deolinda, por quem se apaixonara em Lisboa, que impulsiona seus passos mais íntimos. Quando Deolinda voltou para sua terra natal, Sidónio viu-se teleguiado pelo sonho de reencontrá-la. Mas Vila Cacimba não é o lugar do médico, nem poderá ser jamais. 'No fundo, o português não era uma pessoa. Ele era uma raça que caminhava, solitária, nos atalhos de uma vila africana', diz o engenhoso narrador deste belo romance.
Resenha:
Algumas vezes, os remédios vêm do Diabo e os venenos de Deus; algumas vezes, as mentiras são amorosas e vêm de quem menos se espera. E quem não mente? Nesta obra, Mia Couto mostra como as pessoas são um emaranhado de histórias, visões, tendências e mentiras. Neste enredo, tudo cheira a enganação, é repleto de segundas intenções. Todos são humanos e, por isso, potencialmente enganosos.
Na presente obra, conhecemos Sidónio Rosa, médico português que está na Vila Cacimba para cuidar dos doentes. Entretanto, apesar da aparência de bondade e de visita humanitária, o médico está ali mesmo por Deolinda, mulher maravilhosa que ele conheceu e teve um caso por outras bandas. Para ficar mais perto dela, foi morar em sua terra; entretanto, ela escapou pelos dedos e está em outra localidade, supostamente estudando. Na ausência de sua amada, ele “não era uma pessoa. Ele era uma raça que caminhava, solitária, nos atalhos de uma vila africana” (p. 117).
Enquanto Deolinda não volta, resta ao médico cuidar da família da moça: Bartolomeu Sozinho, ex-mecânico, ex-vivente, ex-sonhador, e Dona Munda, mulher que mente, engana, mas que cuida dos seus com toda a alma. Os três, aliás, serão o núcleo do romance, onde, através de conversas e vivências, tentarão descobrir e redescobrir, em meio às mentiras, a verdadeira razão de viver ou a inexorável praga que é somente existir.
Na ânsia de ter Deolinda de volta, o médico português busca a verdade por trás de sua partida, pois essa ideia de que está estudando o incomoda e parece mentirosa. A partir dessa investigação, descobre um emaranhado de verdades. Terá mesmo partido Deolinda por não conseguir ver os seus no estado em que se encontravam? Teria mesmo ficado grávida de outro? Teria sido abusada? Todas as verdades são levantadas; ou melhor, todas essas mentiras. Cabe ao protagonista saber em que ponto todas as informações se unem e mostram algum indício de serem verdadeiras.
Partindo dessa premissa, Mia Couto mais uma vez desnuda a alma humana, criando personagens tão verdadeiros que é impossível não se envolver e se apaixonar. Todas as falhas e anseios humanos são apresentados nas relações de Munda, Bartolomeu e Sidónio. Os diálogos são portas para a alma; os questionamentos são universais. O chão africano palpita em consonância com o coração dos personagens e, ao mesmo tempo, embalam o nosso também. A vida se torna mágica, apesar de triste, nas palavras de Mia Couto.
A partir da poética, o autor brinca novamente – pois já fez isso em outros livros – com a questão da memória e da imaginação. A verdade das lembranças parece ser diminuta; a imaginação é muito mais parecida com uma foto do que o passado. É em meio às imaginações e quase lembranças que navegamos, quase que sem rumo, tentando entender o amor, a vida e, principalmente, os venenos de cada dia.
Além da beleza e da poética que o autor já coloca em seus livros de forma constante, ainda há espaço para a crítica social. Assim como acontece em Mulheres de Cinzas, aqui o lugar da mulher na sociedade é trabalhado. Seja no retrato quase serviu da mulher que se chama simplesmente “Dona Esposinha” ou nas acusações de feitiçarias, o autor nos chama a atenção para uma cultura sexista e que beira à misoginia. Como o narrador muito bem destacada:
O destino das mulheres é serem culpadas. A idade torna-as ainda mais donas de perigosos saberes. Não é preciso prova. Basta que recaia sobre elas a acusação de feitiçaria. A justiça é sumária, sem juízes, sem juízos. O veredicto está facilitado: as mulheres já foram julgadas antes de haver tribunal. (pp. 58-59)
Por fim, entre poesias e críticas, resta-nos tentar resgatar um pouco mais da beleza humana, dos sentimentos e das esperanças. Nas vozes de Mia Couto, todo o mundo é mais bonito, basta olharmos com mais atenção. Muitas vezes, o que precisamos é do nosso “amardiçoar” (p. 97) de cada dia ou da vida toda, pois é nele que talvez more o sentido da vida. Ou talvez não. Entre tantas idas e vindas, verdades e mentiras, qual o sentido em um buscar um sentido?
Além do excelente enredo, o livro também chama a atenção pelo ótimo trabalho feito pela Companhia das Letras. A capa é belíssima e retrata bem o que encontraremos na obra; a diagramação está muito confortável e a revisão está perfeita. Ou seja, tudo contribui para que tenhamos uma excelente leitura.
Em suma, Venenos de Deus, Remédios do Diaboé uma obra tocante, envolvente e que nos faz enxergar as pequenas belezas da vida, até mesmo as que estão nas inverdades. Essa é uma obra que merece estar nas nossas estantes e corações; uma obra para quem não se contenta com apenas entretenimento, quer a arte e a beleza desfilando diante dos olhos.